Uma crítica antecipada
António José Telo e Pedro Marquês de Sousa (este, numa
associação que não o favorece no plano académico e historiográfico) são os
autores do livro significativamente intitulado O CEP: Os militares sacrificados pela má política. E o título é já
em si mesmo um programa, poderemos
dizer sem receio, anti-histórico, porque adjectiva a política, chamando-lhe má,
e aceitando, por conseguinte, que haveria uma boa política que não foi
executada e não teria sacrificado o CEP (que, os pouco entendidos em coisas de
História e militares, não percebem o que é). O título é, portanto, um erro
histórico, indiciando que tudo o mais o será.
E é um erro histórico, porquê? Pela razão simples de conter
um julgamento, pois a História não julga! A História relata e explica! Quando se
diz má política ultrapassou-se o
limite da História para entrar no da propaganda.
Em História, a política foi o que foi e, se a qualificamos de má, não cometendo o pior dos erros — o
anacronismo —, é porque nos estamos a colocar no mesmo plano daqueles que, no
tempo, se opunham à política praticada e, assim sendo, não fazemos História,
porque fazemos jogo político. E, se
se fizer jogo político, não vamos
explicar, e muito menos contar, com distanciamento. Vamos explicar, usando dos
argumentos que nos colocam como opositores dos acontecimentos e, deste modo,
não contamos… influenciamos. É neste princípio que a obra de António José Telo
e Marquês de Sousa se desenvolve.
Não cabe aqui e agora fazer uma análise pormenorizada do livro.
Daria, e dará, um outro livro que iria, e irá, desmontar toda a suposta arquitectura
histórica usada pelos autores.
Este plano vinha já bem de longe! Em 2014, ou talvez antes, estava
gizado e mereceu o apoio institucional e financeiro da Comissão Coordenadora Para a Evocação do Centenário da I Guerra Mundial,
em cujo projecto se pode ler:
«[…] procura assim uma compreensão geral e abrangente da
conflitualidade e da beligerância portuguesa, salientando o que ela tem de
original e desenvolvendo um aparelho conceptual próprio para comparar a acção
em vários teatros. É um projeto que coloca
a tónica justamente naquilo que as análises portuguesas sobre a Grande Guerra
normalmente ignoram:
-A ligação entre o
político e o militar;
-A inserção da Grande
Guerra (1914-1918) na guerra civil intermitente portuguesa (1908-1927), com
duas revoluções vitoriosas a nível nacional (1915 e 1917), múltiplas
insurreições e pronunciamentos (em todos os anos) e uma guerra civil oficial no
fim do conflito global (1919);
-A ligação entre o
interno e o externo;
-A inserção de
Portugal no sistema internacional» (sublinhados da minha autoria).
(Encontra-se este texto no seguinte endereço electrónico: http://www.portugalgrandeguerra.defesa.pt/Paginas/LinhadeInvestiga%C3%A7%C3%A3o.aspx).
Terá sido a ignorância ou a falta de conselho avisado que
levou à tomada de decisão, permitindo que visse a luz do dia aquilo que deveria
ficar esquecido, porque não tem a característica científica mínima para poder
ser divulgada? E, não tem, porque parte de pressupostos falsos. Vejamos, com
algum cuidado a justificação do projecto.
«[…] coloca a tónica
justamente naquilo que as análises portuguesas sobre a Grande Guerra
normalmente ignoram […]».
Isto é falso! É falso, porque, como à frente provarei, eu
mesmo fiz trabalhos na vertente que António José Telo diz serem ignorados pelas
análises portuguesas. Continuemos.
«-A ligação entre o
político e o militar».
Basta uma breve consulta ao meu livro Do Intervencionismo ao Sidonismo: Os dois segmentos da política de
guerra na 1.ª República: 1916-1918, editado pela Imprensa da Universidade
de Coimbra, em 2010, para se observar, quando enuncio o objectivo da obra, a
falsidade da afirmação feita: «Em face do material por nós recolhido
seleccionámo-lo para formularmos um problema que representasse uma nova forma de olhar a participação
portuguesa na Grande Guerra, em França. Marcámos um objectivo a nós mesmos
e é ele quem nos orienta neste trabalho: demonstrar
que a participação militar portuguesa na 1.ª Guerra Mundial, em França, sofreu
um conjunto de vicissitudes cuja origem se situou dentro e fora do âmbito
castrense nacional, gerando dois «tempos», dois «modos» e, até, dois «tipos de
comando» diferentes no Corpo Expedicionário Português durante o período que
medeia de Janeiro de 1917 a Novembro de 1918. Quer dizer, não nos interessa
estudar a vida do CEP desligada do desenrolar da vida política nacional; um
estudo exclusivamente limitado ao quotidiano do Corpo Expedicionário na frente
de batalha dar-nos-ia uma visão distorcida da verdade. Seria um simples relato
de meras ocorrências desgarradas do seu contexto mais profundo. O que se passou
em França, na frente de combate, e o que ocorreu em Portugal não se deve
dissociar, porque as influências se interpenetraram — naturalmente que o todo
teve maior repercussão sobre a parte do que a inversa, ou seja, os
acontecimentos em Portugal reflectiram-se com maior incidência no CEP do que os
deste no país.
O Corpo Expedicionário
foi uma continuação de Portugal em França; estudá-lo somente como um fenómeno
de natureza castrense era desenraizá-lo de um contexto muito mais vasto no qual
ele, de facto, viveu. Também teremos oportunidade de perceber que a política
portuguesa, só pelo facto de se ter constituído aquela grande unidade militar,
foi influenciada nos seus alicerces mais profundos, gerando posturas que
alteraram comportamentos e atitudes. É esta soldadura que não tem sido estudada
em profundidade, nem tem sido compreendida na sua plenitude. Sobre ela vamos
fazer incidir os nossos esforços na tentativa de se perceber como, mais do que
a beligerância, o CEP ele mesmo, na medida em que foi a parte visível do
intervencionismo, foi motor e viatura de um complexo processo militar e
político.» (p. 24-25).
É preciso mais? António José Telo quer negar o conteúdo da
minha obra e, para fazê-lo, tem de inventar
um artifício que traga uma suposta novidade ao estudo da beligerância
portuguesa. E qual é esse artifício?
«-A inserção da
Grande Guerra (1914-1918) na guerra civil intermitente portuguesa (1908-1927),
com duas revoluções vitoriosas a nível nacional (1915 e 1917), múltiplas
insurreições e pronunciamentos (em todos os anos) e uma guerra civil oficial no
fim do conflito global (1919)».
Em apontamentos anteriores já desmontámos, na generalidade,
esta argumentação. Mas será que ela é assim tão inovadora, para além da
designação, um tanto surrealista, de guerra
civil intermitente?
Vejamos o que nós dissemos na nossa obra já referida:
«A intervenção de Portugal passou a impor-se por várias
razões, mas também para não ser um Estado periférico e fora do contexto,
sujeito à vontade de todos os que haviam sofrido os horrores do conflito. A
tradicional neutralidade novecentista — só alterada para um estatuto de
ambiguidade aquando da guerra anglo-boer — tinha de ser abandonada quer por
razões de ordem interna quer por motivos de ordem externa, tal como há quase
vinte anos demonstrámos, pela primeira vez em Portugal.
Para todos quantos souberam compreender a necessidade da
beligerância — uma beligerância no teatro de guerra europeu — foram claras as
subtilezas dessa política que pouco tinha a ver com o efectivo perigo alemão.
No entanto, para muitos — na época e ainda agora — gerou-se-lhes uma neblina
intelectual que os impossibilitou de perceber como a limitação das operações
militares aos teatros de guerra africanos ou mesmo a neutralidade era nefasta e
inoportuna à política de desenvolvimento e autonomia que os intervencionistas
desejavam.
Podemos dizer, sem receio de errar, que a guerra na Europa
condicionou a política nacional portuguesa durante os quatro anos que durou;
condicionou-a na vertente interna por causa da vertente externa e vice-versa. À
instabilidade provocada pelas incursões monárquicas e às várias conspirações
que os simpatizantes do Rei desenvolveram entre 1911 e 1919 devem juntar-se as
revoluções que a entrada ou não na guerra geraram, pondo republicanos contra
republicanos. De facto, a queda do Governo Azevedo Coutinho, em 1914, e a
chamada do general Pimenta de Castro para formar Ministério, mais não foi do
que um golpe palaciano conduzido pelo Presidente da República, Manuel de
Arriaga, para evitar a ultimação dos preparativos de uma mobilização posta em marcha
para satisfazer os anseios dos intervencionistas. Do mesmo modo, a revolução de
14 de Maio de 1915, que derrubou o velho general alcandorado a primeiro ditador
no regime republicano, teve como objectivo principal abrir as portas da
governação aos intervencionistas que, graças a manobras diplomáticas bem
conduzidas, viram realizado o seu desejo em Março de 1916. A constituição do
Governo de União Sagrada e toda a oposição que se lhe seguiu teve sempre como
pano de fundo a beligerância. A tentativa revolucionária de 13 de Dezembro de
1916, conduzida por Machado Santos, fez-se, uma vez mais, para evitar a marcha
das tropas para França. Um ano depois, o golpe militar de Sidónio Pais foi
ainda, e de novo, uma tentativa de mudar o curso da política de guerra traçada
e executada pelos Governos intervencionistas. O próprio assassinato de Sidónio
Pais, em Dezembro de 1918, embora posterior ao armistício, julgamos, pode ainda
inscrever-se no rescaldo da política belicista.
Se a instabilidade política foi fruto da guerra, tendo-a ou
não como pretexto, a instabilidade social foi resultado directo do conflito que
assolava a Europa e se estendeu a todo o mundo. Aliás, como à frente se verá,
uma das principais características deste grande confronto bélico foi a sua totalização,
ou seja, o levar a guerra, ainda que de uma maneira diferente, dos campos de
batalha para a retaguarda, afectando de modo indelével as populações civis; a
guerra já não era só sentida pelos combatentes e pelos habitantes das áreas
onde se desenrolavam os combates, mas por todos, de modo a quebrar o moral
daqueles a quem competia bater-se em campanha. Neste conflito, deliberadamente,
vão aproveitar-se as facilidades tecnológicas dos contactos rápidos dos
combatentes com os civis para desenvolver, talvez pela primeira vez, a
propaganda como arma de desmoralização. Vai haver uma interpenetração da frente
com a retaguarda de modo a todas as angústias e todas as dificuldades afectarem
os que envergavam uniforme e os que o não vestiam. O número de homens
empenhados na guerra vai ser de tal monta que, pela primeira vez também, as
mulheres são chamadas a trabalhar em fábricas usualmente destinadas a operários
do sexo masculino. A desconformidade económica com o desregulamento dos
circuitos de compra e venda tornou-se o elemento fundamental para corroer as
retaguardas. A guerra submarina, impedindo a livre circulação dos produtos mais
essenciais às populações, foi usada pela Alemanha até à exaustão. Nada nem
ninguém ficou imune aos efeitos da guerra.
Foi no meio desta situação tendencialmente caótica que os
intervencionistas portugueses pressentiram a possibilidade de, ao levar para o
conflito bélico o país, entrosar a política nacional com a política dos
Aliados, minorando alguns dos efeitos sociais e económicos e conseguindo uma
aceitação respeitável no concerto das nações. Por arrastamento viriam os
benefícios económicos e, até, culturais.
A beligerância nacional foi, assim, um factor que,
conseguindo ou não alcançar no todo ou na parte alguns dos objectivos dos
intervencionistas, não só condicionou a condução política durante os quatro
anos de guerra — Agosto de 1914 a Novembro de 1918 — como se prolongou, nos
seus efeitos, muito para além do final do conflito. Não será exagero se
dissermos que o golpe militar de 28 de Maio de 1926 foi, embora já de forma
remota, uma sequela da beligerância portuguesa. Com efeito, a entrada na guerra
veio dar, no plano interno, uma projecção, visibilidade e importância ao
Exército e à Armada que não faziam parte dos planos dos políticos republicanos
em 1910. Essa projecção e importância arrastaram-se muito tempo ainda pela
ditadura e Estado Novo, julgando nós que se pode considerar já sem relevância
significativa quando o ministro Santos Costa executou a reforma do Exército, em
1937.» (p. 18-21).
Quer-se mais para compreender que António José Telo, usando
o pano de fundo onde eu trabalhei e expliquei, em grande parte, as razões da
beligerância, limitou-se a tentar fazer crer que os anos da 1.ª República foram
de guerra civil intermitente —
conceito que não compreendo e que nega a luta política ou reduz a luta política
a simples momentos eleitorais altamente controlados como os imaginou e pôs em
execução Oliveira Salazar e toda a camarilha que o rodeava e sustentava?!
António Telo e Marquês de Sousa acabam mostrando que não são
historiadores, mas vendedores de verdades previamente fabricadas, não
demonstradas e vestidas com o uniforme da propaganda política.